Unidade 3 – Tecnologias de Trabalho na Perspectiva da Vigilância em Saúde

A partir das décadas de 1960 e 1970, observam-se importantes transformações no âmbito do setor Saúde, sobretudo a partir da construção do Relatório Lalonde, no Canadá, que teve grande influência na produção de uma nova racionalidade que trouxe implicações tanto na produção científica sobre Saúde Pública, como na construção de políticas públicas e ações da Organização Mundial da Saúde (OMS) (CZERESNIA; FREITAS, 2009).

De modo geral, o documento produzido pelo Ministério da Saúde canadense em 1974 avançou ao chamar a atenção para a necessidade de se atentar para os comportamentos individuais não saudáveis e, ainda, para a urgência de construção de intervenções que auxiliassem as pessoas na construção de estilos de vida e hábitos saudáveis, evitando assim o adoecimento (WESTPHAL, 2006). Nesse contexto, o discurso da prevenção é potencializado, sobretudo a partir da reorganização dos serviços de saúde para a identificação de indivíduos e grupos vulneráveis a determinadas doenças e agravos, bem como para a construção de estratégias que evitassem o adoecimento, incluindo as ações educativas.

Apesar do avanço em relação ao modelo biomédico, a perspectiva comportamental, tal qual praticada na década de 1970, apresentava importantes limitações, sobretudo por dar grande ênfase nos estilos de vidas e na adoção de hábitos saudáveis, muitas vezes percebidos como escolhas e responsabilidades individuais das pessoas e dos coletivos (SILVA et al., 2010). Alinhadas a essa racionalidade, as práticas educativas em saúde enfatizavam o acúmulo de informações, sobretudo de prescrições consideradas como suficientes para a mudança de comportamentos insalubres e para a adoção de hábitos saudáveis (CZERESNIA; FREITAS, 2009; LOPES; TOCANTINS, 2012).

Embora houvesse um importante deslocamento dos aspectos biomédicos para os comportamentais e ambientais, nesse modelo, os educadores em saúde ainda mantinham uma posição de verticalidade sobre os indivíduos e comunidades, percebidos como seres desinformados e incapazes de conduzir o cuidado de suas próprias vidas (CZERESNIA; FREITAS, 2009).

É fundamental que você se dê conta de que essa racionalidade contribuiu para a produção de discursos de culpabilização dos sujeitos pelo próprio adoecimento, desconsiderando, assim como no modelo biomédico, aspectos sociais, culturais e políticos que contribuem para o modo como os sujeitos experienciam o processo de saúde e adoecimento (WESTPHAL, 2006).

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Nesse contexto, têm sido recorrentes as ações educativas que se centram exclusivamente na transmissão de informações e na obediência, muitas vezes utilizando o medo e a punição como estratégias para amedrontamento da população. No entanto, essas estratégias, não raramente, afastam a população das práticas de cuidado (LOPES; TOCANTINS, 2012; SILVA et al., 2010).

Ainda nos primeiros meses da pandemia de COVID-19, em todo o país, ações educativas de cunho campanhista difundiam o imperativo “Fique em casa!”, “Lave as mãos!”, “Use máscaras e álcool em gel”. Jornais e outros veículos de comunicação também se desdobravam para a divulgação de novos conhecimentos que prescreviam um novo modo de agir, bastante distinto dos hábitos brasileiros, em que a proximidade e o contato físico fazem parte das interações sociais.

Apesar da relevância dessas ações, naquele mesmo período, coletivos e movimentos sociais organizados denunciavam que, apesar de informadas, muitas comunidades conviviam com a ausência de distribuição de água e esgoto, o que dificultava a higienização das mãos e das compras de supermercado. Além disso, a demanda de consumo de álcool em gel levou a um aumento exponencial do preço desse produto, que, apesar disso, estava esgotado em muitos locais, inviabilizando o acesso de grupos com menor poder aquisitivo ou comunidades mais isoladas a esse produto. Também veio à tona que uma série de categorias profissionais, sobretudo os trabalhadores informais e do setor de prestação de serviços, dada a precariedade de suas ocupações, não tinham a possibilidade de aderir ao trabalho remoto, estando esses profissionais expostos durante o deslocamento das suas casas ao trabalho, recorrentemente feito por transportes coletivos lotados e insalubres. Em outras palavras, embora munidos de informações, esses sujeitos não tinham as condições materiais e sociais necessárias para a adoção de novos hábitos de vida.

Voltando às reflexões do Relatório Lalonde, já lá em 1974, elas também abriram espaço para importantes problematizações acerca do papel dos fatores ambientais na saúde dos indivíduos e das populações, sobretudo a partir de estudos que demonstravam a necessidade de construção de intervenções que considerassem as condições de vida e sociais no cenário de saúde e adoecimento (CZERESNIA; FREITAS, 2009; LOPES; TOCANTINS, 2012).

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Nessa perspectiva, ainda na década de 1970 e em contraposição ao modelo biomédico e comportamental, uma nova racionalidade começou a ser delineada e difundida: o modelo biopsicossocial ou de Determinação Social da Saúde (ALBUQUERQUE; SILVA, 2014). Trata-se de uma nova perspectiva que busca romper com o discurso medicalizante – ainda hegemônico – e que se orienta por uma nova compreensão de saúde, que leva em consideração fatores sociais mais amplos, como os marcadores sociais, políticos, econômicos e culturais, não mais percebida como ausência de doenças e restrita às dimensões anatomofisiológicas e comportamentais dos indivíduos (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017). Assim, a saúde passa a ser compreendida como uma produção social e política, e os usuários reconhecidos como protagonistas, junto com as equipes, no processo de construção do cuidado (ALBUQUERQUE; SILVA, 2014; CZERESNIA; FREITAS, 2009).

Tal proposta alinha-se com a nova concepção de saúde proposta pela OMS e com os pressupostos da Saúde Coletiva, que já apontavam para a necessidade de compreender a saúde e o adoecimento como fenômenos biopsicossociais, portanto foi imperativa a busca de intervenções que agissem sobre os determinantes sociais e não apenas sobre o comportamento individual dos sujeitos (BRASIL, 2002). Assim, novas demandas passaram a fazer parte do cotidiano dos profissionais de saúde, exigindo uma reflexão sobre a atuação profissional diante de processos coletivos e macrossociais (BRASIL, 2002; GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017).

Conforme pode ser observado no Diagrama desenvolvido por Dahlgren e Whitehead (Figura 1), nesse período, pesquisadores e gestores começam a considerar a importância da sobreposição de determinantes sociais (redes sociais e comunitárias, condições de vida e trabalho, condições socioeconômicas, culturais e ambientais gerais, entre outros), junto com fatores biológicos (idade, sexo e fatores hereditários, etc.) e comportamentais (estilo de vida dos indivíduos) na constituição dos cenários de saúde e de adoecimento (BRASIL, 2002).

Figura 1 - Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Dahlgren e Whitehead
Brasil (2002).

Nessa perspectiva, outros fenômenos, para além das patologias e dos comportamentos não saudáveis, como as violências, as desigualdades de gênero, a pobreza, o desemprego, entre outros, passam a constituir o escopo de atuação dos serviços de saúde, exigindo a construção de propostas interdisciplinares e intersetoriais que somem esforços para construções coletivas de saídas (BRASIL, 2002).

Além disso, as intervenções passam a ser concebidas e desenvolvidas na perspectiva da Promoção da Saúde, compreendida como “o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle desse processo” (BRASIL, 2002, p. 9). Em outras palavras, trata-se de uma mudança importante no setor Saúde, que passa a valorizar os conhecimentos, os saberes e a participação dos sujeitos e dos coletivos na construção de respostas e soluções que possibilitem o bem-estar (físico, mental, social e espiritual) e a qualidade de vida (ALBUQUERQUE; SILVA, 2014; CZERESNIA; FREITAS, 2009).

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Já na Carta de Ottawa, fruto da I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em 1984, o desenvolvimento de habilidades sociais, em que se inserem as práticas de educação em saúde, é reconhecido como um dos campos centrais de ação para a garantia e consolidação da Promoção da Saúde (BRASIL, 2002). Entretanto, naquele período, reconhecia-se a necessidade de articulação da Educação em Saúde com outros campos, também indispensáveis, a saber: a elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis à saúde, a reorientação do sistema de saúde e o reforço da ação comunitária (BRASIL, 2002). Desse modo, reconhece-se, desde então, que apenas a transmissão de informações e o investimento na divulgação de conhecimentos não são suficientes para produzir mudanças e promover saúde. Antes, faz-se necessária a responsabilização do Estado na construção de condições para que a promoção da saúde se efetive, indo, portanto, além dos esforços e iniciativas individuais (BRASIL, 2002; CZERESNIA; FREITAS, 2009).

Nessa perspectiva, a Promoção da Saúde abre caminhos e perspectivas para um novo modo de construir as ações e as práticas educativas, especialmente por reconhecer a necessidade de essas ações considerarem a determinação social da saúde e por romper com as metodologias prescritivas e verticais (LOPES; TOCANTINS, 2012; WESTPHAL, 2006). No lugar das iniciativas feitas para a população, a Promoção da Saúde abre espaço para a construção de intervenções com a comunidade, incentivando o protagonismo dos sujeitos e dos coletivos na análise, problematização e construção de respostas para os problemas que afetam os seus territórios (VASCONCELOS; PRADO, 2017; WESTPHAL, 2006). Assim, as práticas educativas em saúde não mais se restringem aos serviços de saúde, podendo ser desenvolvidas nos diferentes dispositivos e equipamentos dos territórios, como escolas, instituições religiosas, associações de moradores, entre outros, na perspectiva da interdisciplinaridade e intersetorialidade (SCHALL; MODENA, 2005; SILVA et al., 2010).

Saiba mais

Para aprofundar seus estudos sobre a construção histórica das práticas educativas em saúde no Brasil, sugerimos consultar o texto Educação em saúde: uma reflexão histórica de suas práticas, de Silva et al., 2010, clicando aqui.

Outra mudança importante diz respeito ao papel dos profissionais de saúde, que passam a constituir relações em que a hierarquia e a verticalidade dão lugar à comunicação horizontal e ao diálogo, sobretudo a partir da construção de espaços de livre circulação da palavra, em que todos podem aprender e ensinar (SCHALL; MODENA, 2005; SILVA et al., 2010).

Mais do que treinadores ou prescritores de comportamentos, os educadores em saúde passam a ocupar um lugar de mediadores, incentivando a reflexão crítica e o diálogo, por meio de metodologias participativas que estimulam a problematização da realidade e do contexto dos quais esses sujeitos fazem parte (FIGUEIREDO; RODRIGUES-NETO; LEITE, 2010). Assim, as palestras e as cartilhas, meramente informativas, dão lugar a outras metodologias que valorizam o trabalho em grupo e a criatividade dos participantes, como as oficinas, as rodas de conversas, as intervenções artísticas e lúdicas, entre outros (SILVA et al., 2010).

Para refletir

Considerando as mudanças impostas pela pandemia, as quais você identificou, reflita: que tipos de intervenção educativa poderiam ser construídos nos serviços de saúde em que você atua e que poderiam auxiliar a população vinculada a eles na construção coletiva e participativa de saídas para os problemas enfrentados nesse período? Quais são os elementos necessários para que ela rompa com os discursos do modelo biomédico e comportamental e se consolide como uma prática atenta aos Determinantes Sociais da Saúde (DSS)?

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