Programa Educacional em Vigilância e Cuidado em Saúde no Enfrentamento da COVID-19 e de outras Doenças Virais
O ponto de partida para a reorganização do sistema local de saúde brasileiro e de seu modelo assistencial foi o redesenho das bases territoriais para assegurar a universalidade do acesso, a integralidade do cuidado e a equidade da atenção. Nesse contexto, a territorialização em saúde se colocou como uma metodologia capaz de operar mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias vigentes e direcionar o planejamento e o investimento da atenção à saúde a partir do reconhecimento e esquadrinhamento do território, segundo a lógica das relações entre ambiente, condições de vida, situação de saúde e acesso às ações e serviços de saúde (GONDIM; MONKEN, 2008).
A importância de reconhecer o território como um espaço vivo, processual e relacional na área da saúde deve-se à necessidade de reconhecer riscos, vulnerabilidades, potencialidades e resiliência das populações residentes nas diferentes áreas abrangidas pelas unidades de saúde, particularmente na ESF. Esse reconhecimento é realizado pelo mapeamento físico, social e das relações de poder e convivência dos moradores das áreas e microáreas dos territórios adscritos a um serviço e equipes da ESF(GONDIM; CHRISTÓFARO; MIYASHIRO, 2017; FARIA, 2020).
A partir de tal diagnóstico de saúde das comunidades adscritas é possível planejar ações específicas de promoção, prevenção, atenção e reabilitação, tendo como objetivo intervir nas necessidades sociais e de saúde, reduzir as iniquidades e buscar o empoderamento individual e coletivo.
Esse reconhecimento por parte das equipes de saúde, particularmente das equipes da APS/ESF, precisa transcender a paisagem de uma localidade e de sua população adscrita. É preciso ultrapassar a superfície dos fenômenos, como os das demandas por atenção, por meio de uma instrumentalização do olhar dos profissionais e das equipes, que precisam produzir um processo de estranhamento, isto é, de estranhar o que lhe é familiar e familiarizar-se com o que lhe é estranho.
Na Figura 6, podemos observar um diagrama do processo de territorialização envolvendo a adscrição de uma população à ESF pela gestão municipal. No caso de grandes centros urbanos, a cidade é dividida em regiões, que, por sua vez, são divididas em áreas geográficas que irão corresponder ao território de abrangência para uma determinada unidade de saúde. Muitas vezes, a circunscrição de uma área não atende às características de acessibilidade e vulnerabilidade de sua população ou nem respeita a relação preconizada em torno de 2500 a 3000 pessoas adscritas para cada equipe de Saúde da Família (eSF). Na maioria das grandes cidades, em virtude da baixa cobertura da população pela ESF, essa circunscrição do espaço físico é grosseira e procura suprir as carências na relação entre oferta e demanda por atenção primária existente na região em que será implantada uma nova unidade de saúde, ou haverá a incorporação de novas equipes.
Um segundo passo seria o reconhecimento pelas equipes de suas áreas adscritas e o estabelecimento das microáreas sob responsabilidade dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Contudo, observamos, nos últimos anos, principalmente a partir da PNAB 2017 (BRASIL, 2017), a redução do número de ACS por eSF em diversos municípios e a mudança das suas atribuições, devido ao deslocamento do trabalho no território para atividades assistenciais dentro das unidades de saúde.
Essa desproporção na cobertura pelos agentes impacta, constantemente, o reconhecimento e o acompanhamento do território, pois são esses profissionais que realizam o cadastramento das famílias, a identificação inicial de suas condições de vida e sanitárias, o acompanhamento longitudinal e, por conseguinte, a avaliação contínua de riscos/vulnerabilidades e das dificuldades de acesso da população residente nas microáreas aos serviços de saúde.
Assim, o diagnóstico da comunidade possibilita que as equipes compreendam os papéis das configurações territoriais na produção de condicionantes sociais e individuais que prejudicam ou potencializam a saúde e a qualidade de vida. Desse modo, o cadastramento e acompanhamento das famílias de um território possibilita que as equipes:
Esse diagnóstico possibilita às equipes planejar suas intervenções de promoção, prevenção e atenção à população adscrita, tendo como objetivo reduzir os efeitos da desigualdade e falta de equidade expostos na lei dos cuidados inversos (HART, 1971), isto é, possibilitar que aqueles que mais precisam de atenção sejam priorizados pelas equipes e unidades.
Outra forma de minimizar os efeitos da lei dos cuidados inversos nas atividades e ações cotidianas é estar atento para o fato de que as pessoas que mais necessitam de cuidados em saúde são as que menos os demandam. Ou seja, a saúde precisa estar atenta ao território, alcançando essa população mais vulnerável e mais fragilizada, por meio de busca ativa para poder garantir, de fato, a equidade.
Nesse sentido, a identificação das necessidades e barreiras de acesso dos moradores em um determinado território pode influir na priorização do acesso a consultas individuais, de atendimentos domiciliares às famílias mais vulneráveis, além da circunscrição das áreas e microáreas de risco à saúde para o direcionamento das práticas de vigilância à saúde.
O diagnóstico, associado à mobilização e participação social da população em conselhos gestores das unidades de saúde, pode possibilitar, por outro lado, um direcionamento das políticas públicas (educação, saúde, moradia, saneamento básico, transporte, etc.) locais de acordo com as necessidades e as percepções dos moradores locais. Essa direção leva a uma visão estratégica para a otimização dos recursos e dos esforços públicos, possibilitando o atendimento de um número maior de pessoas para evitar os riscos e as iniquidades em saúde como exposto na Figura 7.